As críticas ao ENEM predominaram na cobertura feita pelos veículos de comunicação nos últimos dias. De tão ácidas e raivosas, as reportagens chegaram, por vezes, a abandonar a razão sendo tomadas por verdadeiros ataques de fúria, deixando de cumprir o papel de informar os leitores, a partir de fontes de dados diversificadas e plurais, a respeito dos vários aspetos da questão. Não cabe aqui explorar os reais motivos que levaram a esta furiosa reação da grande imprensa ao ENEM, mas deixo a sugestão para que o leitor reflita sobre isso.
Neste espaço quero identificar e analisar duas “afirmações” que, de tão repetidas na cobertura jornalística, foram ganhando vida própria, tornando-se “verdades” inquestionáveis (a ocultação da parcialidade das opiniões e análises como se elas fossem a única análise possível é um recurso ideológico potente). Assim, criou-se uma espécie de naturalização do discurso sobre o ENEM, fundado em duas “supostas verdades”, que passo a comentar.
1ª (in)verdade: “Os estudantes já não confiam mais no ENEM”
O número de inscritos no ENEM de 2010 foi o maior de todos já registrados desde o ano de 1998, quando o exame foi criado: 4.611.441 candidatos. O mais interessante é perceber um novo ânimo e esperança nos alunos de escolas públicas, para disputarem uma vaga nas universidades públicas - um projeto que antes simplesmente estava ausente do horizonte destes jovens. Isso mostra que o ENEM tem potencial para democratizar o acesso à universidade pública no Brasil- uma mudança radical num país em que este espaço sempre foi reservado para as elites econômicas e intelectuais, que temiam, e ainda temem, a “invasão do povo” na universidade.
A “fabricação” da desconfiança e da incredulidade em relação ao ENEM é visível. Resta debater a quem interessa a desqualificação do exame. A mim, parece claro que tal desqualificação vai contra os interesses dos estudantes das classes sociais mais pobres do nosso país.
2ª (in)verdade: “Se a prova não for cancelada prejudicará todos os estudantes”
As opiniões e manifestações de estudantes não parecem corroborar com esta afirmação. A esmagadora maioria não parece ter sido prejudicada- uma vez que os erros foram localizados e afetaram cerca de 20 mil alunos. É inegável que esta parcela pode, legitimamente, estar insatisfeita e frustrada- o que é compreensível. Mas o que importa é garantir que eles possam refazer a prova em condições que permitam garantir a igualdade na disputa. E isso é possível através de um mecanismo metodológico previsto em várias avaliações de larga escala, inclusive no ENEM: a Teoria de Resposta ao Item (TRI). Esta metodologia permite a comparação dos resultados ao longo do tempo, e também possibilita aplicar nova prova com o mesmo grau de dificuldade da anterior.
A reaplicação da prova para todos, num período de provas vestibulares, e considerando o caráter isolado das falhas, pode causar prejuízos exponencialmente maiores. E, certamente, impossibilitaria que algumas Universidades Federais considerassem o ENEM como critério de acesso às vagas. Mas uma vez cabe perguntar, a quem isso interessa?
A amarras ideológicas que nos prendem à superficialidade dos fatos impedem uma análise mais consequente da situação. Espero que o debate jurídico que vamos assistir nos próximos dias nos ajude a tornar a discussão mais complexa, pois ela merece. Quem sabe assim vamos ter a oportunidade de discutir, ao fim e ao cabo, a questão de fundo que permanece oculta: quais os impactos do ENEM na redistribuição das oportunidades educacionais na universidade pública? Ou dito de forma mais direta: Queremos que os jovens pobres entrem nas nossas boas universidades?
* Mestre em Sociologia, atuou dez anos na Ação Educativa como pesquisadora e coordenadora de projetos. Atualmente é docente no Instituto Federal de Educação de SP-IFSP